sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Cidade Fantasma

Numa semana muito chuvosa em Porto Alegre, num curto período de tempo em que estava apenas nublado, vinha eu andava de ônibus pela avenida Don Pedro II na direção da Avenida Assis Brasil até o Teatro do CIEE que fica na própria Dom Pedro. O ônibus vinha balançando comigo sentado no banco do corredor e um monte de gente a minha volta. Pessoas com as axila bem expostas, com os braços agarrados nas barras de ferro pintadas de amarelo. E o ônibus balançando. Eu tinha certeza que cada vez entravam mais pessoas, enquanto pouquíssimas saiam. E cada vez mais gente passando e balançando e sua região pélvica perto da minha boca, nariz e olhos.

Quando percebi que entramos na rua que eu queria, mesmo não sendo a parada mais próxima do meu destino, sabia que estava perto. Me levantei com uma mistura de coragem, nojo, raiva e outros sentimentos parecidos com esses, puxei a cordinha vermelha que eu fiquei com medo de arrancar caso o motorista desse uma freada justo no momento em que eu estava com a mão enganchada nela. Fui meio com pressa me roçando nas pessoas o mais rápido que podia, mas ao mesmo tempo tinha uma certa cautela com medo de levar um safanão. Cheguei perto da porta dos fundos, o motorista freou, abriu a porta e logo que desci arrancou rapidamente.

Eu, que portava minha pasta cinza claro e um livro pesado de 30cm por 30cm, tropecei no cordão da calçada e, de muito mal humor, dei de cara com um prédio enorme, cinza escuro, sombrio, com janelas de ferro e os vidros foscos na sua maioria quebrados, como se vândalos tivessem apedrejado todas as aberturas no intuito de acertar os espaços internos ou as pessoas que lá estavam. Outra alternativa possível seria que uma guerra civil tivesse acontecido ali com direito a tiroteios e tudo mais que possa envolver uma guerra desse tipo.

Fiquei pensando o que é que poderia ter acontecido naquele elefante gigante que estava perdido no meio de uma zona cheia de novos prédios comerciais de milhares e milhões de reais como se fosse invisível. Como pode ser que eu nunca o tivesse percebido, perguntava a mim mesmo. Onde já se viu uma coisa de cimento cor de grafite, toda manchada de mofo, de manchas que de certo escorriam do ferro enferrujado das janelas podres? O que aquilo estava fazendo ali? Totalmente deslocado. Cheguei a pensar em uma instalação da Bienal do Mercosul, em que tudo é arte. Certa vez, me lembro de ter visto, nesse caso num museu, uma sala toda de tijolos e com cimento no chão. Em construção. O artista dizia que aquela sala era com um caderno que tinha que ser completado com o conteúdo. Vá que o tal elefante gigante mau cheiroso fosse uma obra desse mesmo autor, cujo nome não vale ser lembrado.

Depois do meu compromisso no teatro, decidi dedicar algumas horas para investigar o que poderia ser aquilo. A construção ocupava toda a quadra. Peguei a rua lateral, e a aparência só piorava. Ou, pensando bem, melhorava porque o muro lateral estava todo pichado, o que, de certa forma, tirava um pouco a atenção para o mausoléu que ficava dentro do muro. Visto que pichação tem em qualquer lugar na cidade, essas até traziam um ar de normalidade para o prédio. Segui até a rua de trás, e a fachada de entrada do edifício era do mesmo cinza grafite manchado e com as janelas quebradas. A diferença é que não tinha muro na volta, e o horror ficava cara a cara com o observador. A entrada principal estava trancada com uma grade de alumínio com um fundo branco que formavam uma porta grande com abertura no meio. Ao lado, uma espécie de janela grade de ferro pintada de verde e já toda descascada, e mais adiante havia uma outra entrada com grade de correr, de cima para baixo com um rolo, onde se enrola a grade de ferro com pequenos buracos ovais, na parte de fora expondo suas quebraduras e ferrugens. Algumas janelas estavam abertas, mas não se percebia sinal algum de qualquer ser humano vivo que pudesse estar circulando ali naquele momento ou, sequer, que tivesse circulado nos últimos cinco anos.

Graças à natureza, algumas árvores davam uma leve disfarçada na fachada, mesmo tirando a luz e dando mais sobriedade. Em cima da porta principal estava o nome em preto com letras gordas escrito Corlac, a antiga companhia de laticínios que pertence ao Estado do Rio Grande do Sul. É um lugar tão abandonado que cheguei a ficar com medo. Com todas as ações corruptas que se vem e ouvem todos os dias, achei que o lugar era perfeito para se planejar um belo crime e esconder provas de qualquer coisa. A porta estava trancada. Bati, gritei baixinho e, convenhamos que graças aos Deuses ninguém atendeu. Teria tomado um susto mesmo se a pessoa mais bela e educada do mundo tivesse me aberto a porta. Eu teria certeza que se trataria de um fantasma. Mas, aparentemente, os únicos ruídos que vinham lá de dentro eram de um lento desabamento do concreto e dos ratos circulando por cima das poças de água acumuladas das fortes chuvas da semana.

Fiquei preocupado com esse buraco negro que existia na cidade. Era como se eu tivesse, ao saltar do ônibus, atravessado um portal mágico para uma outra dimensão que, de repente, pairava gigante diante dos meus olhos. Descobri que existem em Porto Alegre mais de 100 portais mágicos como este espalhados pela cidade, e todos do governo do Estado do Rio Grande do Sul. Há alguns outros também abandonados, porém privados, mas que também dizem respeito ao governos, levando em consideração que ficam em zonas centrais da cidade onde pessoas circulam e acabam, em função disso, sendo obrigadas e conviver com a leptospirose, a dengue, a gripe A ou simplesmente com o cheiro fétido que circula por zonas como a Voluntários da Pátria, a Duque de Caxias, o viaduto da Farrapos que emenda no túnel, onde prédios abandonados ou repartições públicas esquecidas pelo governo se encontram.

Porto Alegre é de fato uma cidade assustadora. De um lado vemos tanta coisa nova em construção, alguns poucos prédios tradicionais da cidade sendo reformados e quando eu achava que a cidade estava se modernizando, PA! Me dou conta de que os fantasmas estão escondidos assombrando as pessoas que circulam distraídas pelas ruas preocupadas com as superlotações dos ônibus ou pensando em fazer arte.

O mais engraçado ou trágico é que muitos desses edifícios abandonados são usados ou para depósito de móveis que não tem mais uso, como computadores velhos, ar condicionados estragados e tralhas em geral, ou socam uns grupos e órgãos de artes cênicas lá dentro pra eles não reclamaram mais.

Eu gostaria de chamar os Ghostbusters, sejam eles cidadão conscientes, políticos engajados ou empresários que ocupem lugares como esses e passem um aspirador gigante sobre as construções que inundam de lixo e medo essa principal cidade do povo que se orgulha tanto de ser avançado em relação aos outros. Esses que assim falam, certamente ainda não se depararam com os fantasmas que estão circulando por toda a parte. Fffrrrrrrr. Um calafrio.

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