quarta-feira, 15 de setembro de 2010

É sempre mais difícil ancorar um navio no espaço




Dentre as diversas opções do Porto Alegre em cena, tenho que me contentar em assistir o que me agrada, no pouco tempo que me sobra. Ou seja: há certa chance de eu não ter tanto sucesso. Pois bem, acho que a sorte está do meu lado: domingo fui ao Teatro CIEEE assistir “Um navio no espaço ou Ana Cristina César”, peça de Paulo José encenada por ele e a sua filha Ana Kutner sobre a poeta Ana Cristina César, considerada um dos expoentes da poesia da geração de 1970. Saí maravilhada, pensativa, curiosa.

Paulo José começa a peça se questionando: “porque mulheres inteligentes se matam”?

E realmente é curioso isso. Parece que a vida rasa, sem maiores questionamentos, é tão mais fácil, não? A poesia precisa de drama, precisa de sofrimento. Parece que só o sofrimento tem conteúdo, a felicidade simplesmente é vivida. Já foi escrito um post nesse blog pelo Fernando comentando que as grandes artistas, cuja obra efetivamente perdurou, geralmente tiveram uma vida sofrida: é o caso de Billie Holiday, Elis, entre tantos outros.

A Ana Cristina é um desses exemplos: da classe média-alta carioca, bonita, inteligente, mestrado em Londres, um dia simplesmente se atirou pela janela do apartamento dos pais e tirou a sua própria vida. O que ela fez e escreveu antes disso? É o que conta a peça, vasculhando sua vida e obra para tentar entender justamente aquela primeira indagação: porque?

FAGULHA

Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.

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