quarta-feira, 22 de setembro de 2010

FICHA LIMPA

Já falei por aqui sobre o avanço que eu considero a Lei Complementar 135/2010, a chamada "Lei da Ficha Limpa", de iniciativa dos cidadãos brasileiros e que visa coibir verdadeiras monstruosidades eleitorais que eram constantes no nosso país - como a possibilidade de eleição de corruptos praticamente confessos, somente porque sua condenação ainda não havia transitado em julgado (para quem não entende: não haviam se esgotado todos os recursos).

Ocorre que a celeridade não é exatamente uma característica da justiça brasileira e existe uma enorme gama de recursos que acabam sendo utilizados apenas com o fim de prorrogar o tal trânsito em julgado. Em razão disso, políticos sabidamente ladrões conseguiam se candidatar (e pior, eleger-se - salve o povo brasileiro!) repetidas vezes, continuando a usufruir do dinheiro público como bem entendiam. Casos óbvios são Paulo Maluf e Jader Barbalho, por exemplo, mais enrolados do que novelo velho e ainda assim presentes em todas disputas eleitorais pós-redemocratização.

A Lei, todavia, não é unânime e gerou grande controvérsia. Seria constitucional? Não seria uma afronta à presunção de inocência, princípio consagrado na nossa Constituição? Poderia ser aplicada nessas eleições, se passou a viger menos de um ano antes delas? Pois bem, hoje o Supremo Tribunal Federal julgará recurso do ex-governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz (PSC), contra o impedimento de sua candidatura baseado na lei. Apesar de ser um julgamento pessoal, é de extrema importância, pois poderá responder todas as controvérsias apontadas e, assim, refletir diretamente sobre os demais casos de candidatos afetados pela lei. Até agora foram barradas 250 candidaturas em razão da Ficha Limpa.

Para melhor entender a discussão e os argumentos das duas partes, coloquei abaixo dois artigos: um que prega a inconstitucionalidade da lei e outro que defende o contrário. Vale a pena ler, tentar entender, se posicionar e, dependendo da posição, torcer. Porque por incrível que pareça, um julgamento que ocorrerá em Brasília, cujas partes você nunca viu mais gordas, pode sim mudar a sua vida.

A Lei da Ficha Limpa: um avanço institucional?
Murilo Melo Vale


A LC 135/2010, mais conhecida como "Lei da Ficha Limpa", inaugurou no Brasil uma série de novas condições de elegibilidades com o escopo de proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandado. Dentre estas novas inelegibilidades, incluem-se restrições à candidatura de pessoas que tenham contra si ações judiciais em que já houve condenação por órgãos colegiados sem a necessidade, contudo, de que a decisão tenha transitada em julgado.

Ao deparar com a nova lei eleitoral, realmente, o primeiro sentimento que vem à tona é de orgulho e satisfação, posto que esta lei representou uma grande vitória da democracia direta – por ser proposta por iniciativa popular – bem como da repressão à corrupção, que sempre atormentou este país.

No entanto, uma reflexão mais aprofundada nos leva a concluir que a novel legislação eleitoral não representa um avanço institucional, não havendo, por isto, motivos para comemoração.

No decorrer da história recente, foi despendido muito esforço em prol do reconhecimento e da institucionalização de certos direitos fundamentais para o homem. Vejamos, por exemplo, o caso do Princípio da Igualdade Formal: até a pouco mais de 200 anos, pensar que todos os homens são iguais perante a lei era algo inconcebível. Havia privilégios e restrições concedidos em razão do nascimento. Era corriqueira a criação de leis por autoridades cujo poder era amparado por dogmas sagrados, que impunham certas limitações e restrições de direitos apenas a uma classe da população, geralmente, majoritária. Tornou-se necessária, portanto, uma grande revolução mundial, não só no pensamento, como também nas instituições políticas, para garantir a intangibilidade de certos direitos universalmente entendidos como fundamentais a todos os homens, tais como a propriedade, a vida, a liberdade, e muitos outros.

A causa vitoriosa em prol do reconhecimento dos Direitos Fundamentais do homem teve que seguir por sua institucionalização, tendo como marcos históricos, a Declaração de Direitos de 1689 (Bill of Rights), a Constituição Norte-Americana de 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, cujos preceitos foram seguidos pelo constitucionalismo de várias nações. Tal institucionalização fortaleceu-se, ainda, no século passado, com a Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão da ONU (1949) e com o Pacto de São José da Costa Rica (1969).

O fato é que somente após o reconhecimento e a institucionalização dos direitos fundamentais foi possível a criação dos alicerces para a inauguração de um Estado Democrático de Direito, no qual impera a vontade da lei produzida democraticamente e garantidora dos preceitos básicos do ser humano.

Dentre estes direitos, arduamente conquistados na história contemporânea e essenciais para a criação de um Estado Democrático de Direito, encontra-se o Princípio da Presunção de Inocência. Em qualquer Estado Democrático de Direito existente na atualidade, seria insólita e disparatada a alegação de que uma pessoa possa ser considerada má ou culpada por algo, sem que tenha uma decisão definitiva do Estado Julgador. É justamente isto que a Lei da Ficha Limpa se propõe a fazer, ao impedir a candidatura de quem tenha sido condenado, sem que se tenham esgotados todos os recursos cabíveis.

Ora, hodiernamente, incontáveis são os recursos providos para modificar decisões anteriormente proferidas, seja por juiz singular, seja por órgão colegiado. Restringir esse direito fundamental da Presunção da Inocência pode consubstanciar um grande prejuízo, não só para o candidato político, como também para as instituições democráticas. Isto porque, uma eventual injustiça cometida na declaração de inelegibilidade implicará um prejuízo injustificável para o cidadão, que terá seu direito de voto restringido.

Admitir juridicamente estas novas condições de inelegibilidade é uma ofensa à mencionada evolução histórico-institucional que garantiu a intangibilidade dos direitos fundamentais do ser humano. Com efeito, para podermos nos rotular como um Estado Democrático de Direito, é imprescindível o respeito às conquistas políticas e institucionais de nossos antepassados que, com amplo consenso, solidificamos em nossa Constituição da República.

Desta forma, é indiscutível que esta "excepcionalização" de direitos fundamentais, em vista de certas finalidades pragmáticas, apresenta-se no mundo jurídico como um grande retrocesso para o Estado Democrático de Direito, devendo, por isto, ser reprovada social e juridicamente. Caso contrário, em pouco tempo, estaremos aceitando normas que limitem a intimidade, a dignidade, o devido processo legal, o contraditório, bem como outras que possibilitem provas obtidas por meio da tortura, a escravidão, a discriminação racial, a desigualdade formal etc.

Por tal razão, não se pode considerar a "Lei da Ficha Limpa" um avanço para nossa democracia. As novas condições de inelegibilidade devem permanecer, porém condicionadas ao transito em julgado de uma sentença condenatória, a única maneira sensata e democrática de se afirmar que determinada pessoa não é digna de um cargo político.

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FICHA LIMPA
A constitucionalidade da nova lei

Por Dalmo de Abreu Dallari em 21/9/2010



Em breve o Supremo Tribunal Federal deverá julgar um caso que envolve uma decisão sobre a constitucionalidade da Lei Complementar nº 135, a chamada Lei da Ficha Limpa. A fim de que se tenha clareza quanto ao que vai ser decidido pela Suprema Corte, é oportuno apresentar uma síntese da situação jurídica e dos questionamentos que deverão ser objeto da decisão do Judiciário.

Em primeiro lugar, é importante assinalar que o Capítulo IV da Constituição trata "Dos Direitos Políticos" e ali se encontra o artigo 14 que, no parágrafo terceiro, faz a enumeração das condições de elegibilidade, ou seja, os requisitos para que alguém possa ser eleito para um cargo político, recebendo o mandato do povo. O parágrafo 7º trata expressamente das situações que tornam uma pessoa inelegível, como, por exemplo, os parentes próximos de uma autoridade, que não podem ser eleitos para substituí-la. E o parágrafo 9º dispõe, com minúcia, sobre as inelegibilidades numa visão mais ampla, prevendo textualmente: "Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta."

Com base nesse dispositivo constitucional foi aprovada a Lei Complementar número 64, de 18 de maio de 1990, estabelecendo outros casos de inelegibilidade, lei que passou a ser conhecida como Lei das Inelegibilidades e que foi parcialmente alterada pela Lei Complementar número 81, de 13 de abril de 1994. Mais recentemente, a partir de iniciativas de segmentos da sociedade brasileira, foi aprovada pelo Congresso Nacional uma nova lei fixando outros casos de inelegibilidade, como previsto na Constituição. Trata-se da Lei Complementar número 135, de 4 de junho de 2010. Desde logo se verifica que o estabelecimento de novos casos de inelegibilidade por meio dessa lei é de inquestionável constitucionalidade, pois essa hipótese está expressamente prevista no artigo 14, parágrafo 9º, da Constituição.

Exigência de moralidade

As dúvidas suscitadas pelos interessados, e que deverão ser dirimidas pelo Supremo Tribunal Federal, referem-se aos casos de condenação em órgão judicial colegiado, ou seja, em órgão com mais de um julgador, num processo de apuração de abuso do poder econômico ou político. Uma das alegações é que a Lei Complementar nº 35 não poderia ser aplicada às eleições deste ano porque a Constituição proíbe a aplicação de uma nova lei a uma eleição que ocorra até um ano depois de sua entrada em vigor. Como a Lei da Ficha Limpa entrou em vigor no dia 7 de junho deste ano, que foi a data de sua publicação, seria inconstitucional aplicá-la às eleições do próximo dia 3 de outubro.

Na realidade, a proibição constitucional não tem a extensão que se pretende dar a essa interdição e não impede a aplicação imediata, nestas eleições, da Lei da Ficha Limpa. Com efeito, o que diz, textualmente, o artigo 16 da Constituição é que "a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigência". Ora, processo, como bem esclarece o notável processualista José Frederico Marques, é um conjunto de atos concatenados, que devem ser praticados numa sequência pré-estabelecida, servindo de instrumento para o exercício da função jurisdicional. Ora, o que a Lei da Ficha Limpa faz é, simplesmente, estabelecer condições de inelegibilidade, sem qualquer interferência no processo eleitoral, que continua a ser exatamente o mesmo anteriormente fixado por lei. Não há, portanto, qualquer inconstitucionalidade.

Outra alegação é que a aplicação da Lei da Ficha Limpa a situações estabelecidas anteriormente seria contrária à regra constitucional que proíbe a retroatividade. Também nesse caso está ocorrendo um equívoco. De fato, a Constituição proíbe a aplicação retroativa da lei penal, encontrando-se essa interdição em disposição expressa do artigo 5º, inciso XL, segundo o qual "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu". Ora, não há como confundir uma lei que estabelece condições de inelegibilidade, uma lei sobre as condições para o exercício de direitos políticos, com uma lei penal. Veja-se que a própria Constituição, no já referido artigo 14, parágrafo 9º, manda que seja considerada a vida pregressa do candidato, ou seja, o que ele fez no passado, para avaliação de suas condições de elegibilidade. Assim, pois, não ocorre a alegada inconstitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, porque ela não fixa pena, mas apenas torna explícito um dos aspectos da vida pregressa que podem gerar a inelegibilidade.

Em conclusão, a Lei da Ficha Limpa não afronta qualquer disposição constitucional e, mais do que isso, complementa a exigência constitucional de moralidade para o exercício do mandato.

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