terça-feira, 10 de junho de 2008

mudança de perspectiva

Exercício: despir-se do dinamismo de dias cheios e noites pouco dormidas, abrir mão de passar por inúmeros lugares diferentes entre o amanhecer e a hora de deitar, e mesmo estando em casa, considerar longamente os prós e contras de levantar do sofá e ir até o banheiro, a cozinha, a sala... Se alguém me fizesse essa proposta uma semana atrás, é provável que eu não me desse nem ao trabalho de responder a tamanha insanidade. A única hipótese de eu me submeter a essa experiência seria no caso de imobilidade forçada. Pois bem, eis a grande oportunidade. E seguem as minhas impressões:
O dia fatídico começou como uma quinta-feira normal: fui pra cozinha da Ju (chef e amiga com quem eu trabalho) logo cedo, fiz uma torta polonesa que eu fiquei louca pra comer, e no final da manhã segui para o StudioClio pra mais um almoço cultural. Correria habitual, vão as entradas, bota a água pra ferver no fogareiro, arrasta o fogareiro pra lá... E aí tudo mudou. O som da panela caindo, a dor, gritaria, o desespero generalizado, o HPS, dor, morfina, dor, curativo, dor... Primeira constatação da mudança de perspectiva: ser o alvo dos olhares de comiseração de uns, de aflição de outros e de indiferença de poucos. Quantas vezes eu teria lançado olhares como aqueles sem ter feito nada além de olhar? Pessoas com frio e fome na sarjeta, crianças nas sinaleiras, velhinhos caminhando com dificuldade... O que se pode fazer? Na maior parte dos casos, nada, ou muito pouco, mas sendo aquela que recebe esses olhares a vontade que dá é de dizer "pára de me olhar com essa cara e me ajuda, chama um médico, me dá um remédio que me faça apagar!" ou então "vocês trabalham no HPS, deve ter gente muito pior entrando aqui a toda hora, então não me olhem com pena, como se eu fosse ficar com uma cicatriz horrenda, me convençam de que vai ficar tudo bem e que eu só tô chorando desse jeito porque eu sou uma fiasquenta sem noção do que é dor de verdade!". Mas os olhares só me diziam que a coisa tava preta mesmo... O atendimento nem demorou muito, mas antes eu tive que preencher uma ficha, e essa burocracia insensível me fez gritar a altos brados meu endereço, telefone e ocupação, pra depois um enfermeiro me largar, na cadeira de rodas, na frente do ambulatório de queimados. Poucos minutos de espera, mas a dor fez parecerem horas, e me fez pensar, depois, em quem realmente passa horas, até mesmo dias, nas filas de hospitais, com dor, sem ninguém do lado pra segurar na mão, e às vezes tem que desistir e ir pra casa, sem solução. É impossível que um ser humano passe por isso incólume, sem se revoltar, ou sem que passe a acreditar que é mesmo uma criatura designada pra esse tipo de vida, e que o negócio é se acostumar ao sofrimento, à solidão, à indiferença. E alguém se acostuma com isso? Eu sabia que em comparação à degradação que um ser humano pode sofrer quando depende da saúde pública no Brasil, eu mal tinha um problema, mas tava doendo pra caralho, então eu continuava chorando.
Morfina via oral. Como ex-hipocondríaca e espectadora atenta de seriados sobre rotinas hospitalares, só de ouvir aquelas palavras acreditei que meus problemas acabariam. Doce ilusão... O efeito é o seguinte: a morfina deixa a pessoa grogue, mole feito uma gelatina, incapaz de gritar, chorar e se contorcer, mas faz - ou pelo menos fez - muito pouco pela dor. Ou seja, o povo em volta começou a comentar que finalmente eu iria melhorar, já tava "mais calminha"... não mandei tomar no c... por total falta de articulação. Pensei agora nos loucos que são mantidos constantemente dopados pra causarem menos transtorno. Pensei também nas pessoas que, aos olhos de médicos e enfermeiras, "não estão sentindo nada", totlmente incapazes de se comunicar... E se estiverem sentindo?
Nesse dia, vim pra casa, e aqui minha família passou a tarde me paparicando. Depois de 2 Tylex, a dor se tornou suportável, e foi bom ficar quietinha, sendo cuidada, pelo resto da tarde. Fui ainda no médico. Ele abriu os curativos e minha mãe ficou branca, pediu pra se retirar da sala por alguns instantes. Como ela é médica, eu preferi nem olhar.
Dia 2
Acordei bem. Tarde. Almoço em família. Primeiro banho e primeira troca de curativo em casa. Banho sozinha, dolorido e complicado, mas possível. Curativo a cargo da minha mãe, já vacinada contra o susto, e ciente de que esse papel só caberia a ela mesmo. Acontece que ela é mãe, muito antes de ser médica, e eu sei que não é nada fácil desgrudar as gazes dos meus ferimentos enquanto eu choro de dor.
Torta de sorvete, passada na faculdade, dei um pulo (!) no StudioClio, aniversário da Ju (minha chef).
Visitas à noite, amigas queridas que eu tava há tanto tempo sem ver. Percebi minha total incapacidade de aconselhar pessoas com problemas que a minha ótica considera fúteis demais. Preferi fazer um chá pra minha amiga que só chorava depois de uma briga com o namorado. Ficar de pé na cozinha me fez lembrar da Pequena Sereia, quando o Hans Christian Andersen fala da sensação dela ao caminhar com pernas humanas: "era como se centenas de lâminas atravessassem minhas pernas a cada passo que eu dava". Parecido com isso, mas ainda assim melhor do que ficar na sala, sem saber o que dizer a respeito de uma situação insólita, tristemente comum, que seria normal caso o casal em questão tivesse uns 10 anos a menos.
Dia 3
Paciente impaciente, repouso absoluto nem pensar! Sábado de sol, baita dia, não pensei duas vezes e fui pro Parcão com a família. De carro, bien sûr. Almoço na vó, coisa boa... na volta pra casa, visitas, muitas visitas, adoro! Ritual doloroso com amigas do lado pra distrair, alivia bastante. Filme, comida indiana, risadas...
Dia 4
Acordei pensando "nossa, como eu tô bem!"... segui com essa idéia ao longo do dia, um domingo chuvoso, com almoço em família e filme no sofá, e uma visita muito querida. Pernas 100% não fariam muita diferença nesse dia... Mas a dor piorou. Acho que nessa fase os curativos grudam mais...
Dias 5 e 6
Não tem porque separar esses dois dias porque não aconteceu muita coisa, e meu estado de espírito foi mais ou menos o mesmo. Tô de saco cheio. Saco cheio de sentir dor, de não sair de casa, de precisar dos outros pra tudo. Fico triste por não poder correr, nem sair pra andar pela rua... tô me sentindo um fardo aqui em casa, especialmente pra minha mãe, que tem que fazer meu curativo todos os dias... uma merda isso. Agora são 4 e meia da tarde e eu tô aqui. De pijama. Já escrevi um tratado, praticamente, por total falta do que fazer com o meu tempo. Não quero mais brincar! E essa dor desgraçada pra tudo, essa fragilidade irritante! De manhã, quando fui fazer xixi, vi que o papel tinha acabado e minha irmã não tinha pegado um rolo novo. Comecei a chorar! Patético, Mariana, patético...
No final do dia, minha vó veio aqui me ver. Fiquei com raiva de mim mesma, porque em vez de me animar com a visita, exacerbei a pena de mim mesma e só chorei, reclamei, praguejei... mas vai ver que eu precisava mesmo desabafar, não gosto de fazer isso com a minha mãe, acho que a barra pra ela já tá bem pesada.
Na hora de deitar, depois de ver um filme, fui subir as escadas pra deitar. A família toda já dormia. E ao notar que eu não sentia mais aquela dor bandida pra caminhar, eu comecei a sorrir. Cena bizarra: guria mancando escada acima, rindo pro nada! E daí?, eu tava em estado de graça...
Dia 7
Dia lindo, ensolarado. Bem mais otimista, sem a dor paralisante, hoje vou sair de casa... as coisas começam a melhorar.
Não acho legal a idéia de ficar falando muito de eventos pessoais aqui no blog, mas senti necessidade de registrar isso que aconteceu e alguns sentimentos que isso me provocou. Acho que pra quem lê é monótono, mas escrevi mesmo pra mim, pra elaborar melhor as idéias. Tem coisas que eu ainda não digeri muito bem, como a atitude de algumas amigas e a visão do ferimento em toda a sua extensão. Ainda preciso pensar a respeito. Mas até aqui foi bom escrever, botar pra fora essas coisas, que se ficam muito tempo guardadas, no meu corpo se transformam em dores, alergias e afins...


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