segunda-feira, 30 de março de 2009

Sobre traças e escribas

Eu entrei no blog hoje de manhã a fim de ver o que tanto a Luiza anda escrevendo... sim, porque ela disse que anda numa produção incessante de textos, aí eu fiquei curiosa, lógico! E vim conferir. De fato, meu nome e o do Pato estão ali só de enfeite, porque só dá ela!
Acho muito positivo isso que a Lu tem de escrever quando a cabeça anda a mil. A escrita, quando praticada por quem tem sensibilidade, é - e sempre vai ser - a forma mais fidedigna de se transmitir impressões, convicções, questionamentos. Mas mais do que isso. Hoje deu vontade de falar das maravilhas que papel e caneta/tela e teclado fazem pela "desanuviação" da mente.
Eu sou uma pessoa ansiosa. Em alguns momentos mais, em outros, menos. Nos últimos tempos, tem se tornado rotina deitar a cabeça no travesseiro e ser incapaz de desligar. Deitar e dormir? Desconheço a sensação. E depois de 4 anos na faculdade de direito, é irônico dizer, mas foi a insônia que me mostrou a importância do método!
Começou assim: chegada da cozinha, exausta, um trapo, eu tomava uma banho morno e me jogava na cama com livros e revistas (assim, no plural). Fazia com a leitura o que muitos fazem com o controle remoto: zapeava, pegava uma coisa, largava outra, e enquanto lia a Gula, sentia que a Elizabeth David tinha uma coisa importantíssima pra me dizer sobre a Cozinha Regional Francesa. Duas horas depois, em média, capotava, e acordava achando que eu tinha morrido e reencarnado como traça, cercada de papel por todos os lados, e com o abajur aceso.
Depois de repetir a experiência por incontáveis vezes, constatei sua ineficácia: fixava pouquíssimo do que lia, dormia mal, e passava o dia com a cabeça feito rádio com dial descontrolado, passando de estação em estação, com vários períodos de chiado e interferência. iPod sempre ligado, porque em certos momentos, difícil mesmo é suportar the sound of silence.
Parti pra 2ª etapa do experimento: passei a levar pra cama somente uma coisa. Não sempre a mesma, porque a idéia era me perguntar, a cada noite, do que eu estava precisando naquele momento (entre aquelas coisas que a literatura poderia me oferecer, bien sûr). Se meu colega tivesse falado muito sobre técnicas da gastronomia italiana, chamava a Marcella Hazan pra cama. Se o chef usasse nomes que me deixassem com a pulga atrás da orelha, corria pro livro da Cordon Bleu pra conferir se o menu do restaurante andava fazendo jus aos termos da cozinha clássica. Resultado: solucionado o problema quanto à fixação de aprendizados. Mas o dial estragado persistia... Como o objetivo era dormir bem para acordar bem, já que eu poderia estudar em qualquer outro horário do dia, não houve alternativa a não ser prosseguir com o experimento, passando para a 3ª etapa.
(Aqui, cabem breves parênteses: eu já fazia terapia, há mais tempo do que eu fazia direito. Sigo fazendo as duas coisas, a propósito. Então eu pensava um pouquinho, sim, sobre os reais motivos da ansiedade.)
Acontece que, apesar do parêntese acima, eu nunca fui muito de comprar livros pensando em entender mais sobre mim mesma. No máximo, lendo alguma coisa sobre filosofia eu traçava paralelos, mas sempre li muito mais pelas obras em si do que pelo autoconhecimento. Achava que as minhas sessões de análise bastavam, e tinha muito o que aprender nos livros. Dito isso, entende-se porque eu passei a convidar pros meus lençóis alguns romances e clássicos da literatura. Já era um avanço, o foco em uma história exigia mais concentração do que a leitura de receitas, capítulos rápidos e reportagens. Mas um dia, na Cultura, me deparei com uma estante que só tinha livros de um autor. Duas pessoas já haviam me falado nele e nas suas obras, tratando sobre a fragilidade da realidade atual, a volatilidade dos laços, a superficialidade das relações... ele merece uma postagem própria. Agora vou me limitar a dizer que a obra de Zygmunt Bauman tem tudo a ver com o momento pelo qual eu passava ali, e na 2ª vez que vi a tal estante, resolvi parar de ignorar e comprei um dos livros líquidos que ele escreveu. E comecei a ler na mesma noite. Engraçado, parecia que o chiado aquele tinha virado uma sintonia, e agora era o volume que subitamente aumentava. Confesso que nas primeiras páginas, o som foi ensurdecedor! Não suportei muito tempo, fechei em seguida. Mas não ia pegar no sono, tinha certeza disso. Pensei em calçar os tênis e sair correndo, mas percebendo a patologia intrínseca a esse ato, abri a gaveta da cabeceira e saquei dali meu diário. Sim, eu tenho um! Bom, não é bem um diário, é mais um de-vez-em-quandário, mas enfim... E comecei a escrever como quem vomita: fragmentos irreconhecíveis de tudo que andava aqui dentro, pensamentos desordenados, caos total. Foi uma catarse, e algumas páginas depois eu me sentia mais calma. Ainda um pouco assustada com aquilo tudo, mas com a sensação de que tinha tirado de dentro de mim o mais nocivo. Agora, era reflexão e introspecção, o mesmo que muito líquido e alimentação leve, pra repor as energias e curar o organismo (como quem vomita, eu disse). Continuei nas noites seguintes, e sigo fazendo isso em algumas noites: escrevendo pra aliviar. E depois do alívio, não parando de escrever, porque aquelas palavras que saem no começo bagunçadas, aos poucos começam a fazer sentido. As coisas vão ficando mais claras, e é como pegar um quarto bagunçado e guardar cada coisa no seu devido lugar. E aqui eu entro no ponto que me fez ter vontade de escrever tudo isso: é fundamental expressar. Às vezes a gente sente uma inquietação e não sabe de onde vem, e é fácil se dar por satisfeito com um paliativo. O paliativo só costuma aumentar a angústia. E tudo vai ficando mais superficial e mais sufocante. Pensar, definitivamente, não é o caminho mais curto, olhar pra dentro pode dar trabalho, sem falar que a dor é uma possibilidade, sim, bem grande. Nesse caminho tortuoso, o início é a pior parte, porque mais difícil do que sentir dor é sofrer sem saber onde dói. Escrevendo fica tão mais fácil. Escrevendo com a mão solta, sem preocupações estilísticas, sem pensar em quem vai ler, escrever pra si mesmo, e só. Se quiser mostrar pra alguém que vá entender, ótimo. Se depois disso, quiser conversar, melhor ainda (acho mesmo que o tratamento completo inclui longas conversas com quem saiba ouvir. Amigos, analista, pai, mãe...)! Usar a palavra escrita depois que o furacão passou também é ótimo, porque sim, nós temos ego, e ele se agrada muito de ver que todo aquele material produzido pela nossa psique dá um bom texto, também. Escrever demora? Demora o nosso tempo. O tempo de pensar, sentir, saber o que se passa e só então tomar decisões e viver plenamente.
Comecei falando na Luiza, falei bastante de mim, e encerro pensando em outra amiga. Se só ela ler, já fico bem feliz!
Indicações literárias afins: Amor Líquido (Zygmunt Bauman) e Les mots (Jean Paul Sartre).

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