segunda-feira, 1 de junho de 2009

Ata-me

Depois de tanto escrever sobre dias cinzas e diante da previsão de mais um fim-de-semana de ruas pouco convidativas, minha sede de cores e tramas vibrantes foi levada às últimas consequências! Entrei na locadora em visível agitação, e supliquei ao atendente: Almodóvar!

Como bom profissional que é, ele detectou a gravidade do caso e prontamente sacou uma dose cavalar: Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos E Ata-me.

Optei aleatoriamente por começar pelas mulheres piradas. E a escolha casual se mostrou acertadíssima. O filme é cômico, e a estética almodovariana - atemporalmente kitsch - não poderia ter tirado melhor proveito da década de 80. Highlights: o visu de Julieta Serrano como esposa traída, completamente desgrenhada, de sombra preta com cílios desenhados e indefectível tailleur de tweed; e o comercial de sabão em pó estrelado pela protagonista, uma Carmen Maura linda de morrer, que lavava a camisa ensanguentada de seu filho assassino, enaltecendo a capacidade alvejante do produto ("parece mentira")! A marca do sabão? "Ecce Homo"! Sensacional...

O bom de começar com o filme mais absolutamente bizarro foi que assim preparou-se o terreno para a segunda sessão: Ata-me! A pungência do título já dá uma idéia da trama, e um olhar menos atento pode não enxergar muito além de uma comédia sado-masô. Mas fora todas as gargalhadas e bizarrices, além da transa espetacular entre Banderas e Victoria Abril, o filme me comoveu. De verdade.
A julgar pela filmografia mais recente do diretor, nenhuma surpresa: Fale com Ela, Má Educação, Volver... todos filmes extremamente tocantes. Caricaturais em maior ou menor medida, mas capazes de fazer os mais broncos ficarem pelo menos com um nó na garganta, diante da combinação de fotografia fora do comum, trilha sonora sublime e personagens humanos demais. Mas fiquei com a impressão de que essa capacidade que o Almodóvar tem de ler e traduzir o universo humano - e principalmente feminino - com tamanha delicadeza foi se mostrando aos poucos e de maneira extremamente sutil.
Pra ilustrar o que eu tô tentando expressar, vou falar logo do bendito filme, em vez de ficar nesse ata/desata (não resisti, sorry!). Ata-me conta a história de amor entre uma atriz de segunda e o psicopata que a sequestra. À 1ª vista, a doida da trama é ela, afinal de contas, pra se apaixonar por uma pessoa que te quebra um dente e te mantém amarrada por dias a fio, só sendo louca de atar (!) mesmo... Acontece que o tal maníaco passou a vida jogado às traças, e o único amor que conheceu foi o da diretora do hospital psiquiátrico onde ele vivia até então. Um amor não exatamente maternal, digamos assim... De modo que sendo obcecado pela mulher - com quem já tinha passado uma noite, no passado junkie dela -, e não tendo nada a perder, era de se esperar que ele não pensasse em outra alternativa além de manter a moça bem presa até que ela se apaixonasse também. Enquanto isso, ele cuidava da dor de dente dela, falava nos filhos que eles teriam e a deitava numa cama sob um teto envidraçado, pra que ela ficasse com a lua e as estrelas enquanto ele ficasse fora... e a porn star viciada em heroína descobriu que era merecedora de amor e de cuidados (ainda que um pouco fora dos padrões preconizados pela Lei Maria da Penha...). Até que teve a chance de fugir, e não fugiu. E quando foi resgatada, não demorou a correr atrás do sequestrador amado, pra viverem felizes para sempre...
Fiquei pensando depois na riqueza de elementos da história, que tem uma série de nuances das quais eu não vou falar aqui; na sutileza de um diretor que exagera nas imagens, que constrói um universo over, pra dar um recado que passa longe do escracho puro e simples. Pensei também em como deve ter sido difícil contar uma história dessas, em que se consegue enxergar o amor apesar de todas as barbaridades, e como é libertador lembrar que a vida real não se presta a maniqueísmos e idéias prontas. Também não é porque eu me afeiçoei à história de Ricky e Marina que eu passei a achar lindo bater em mulher ou manter a amada em cativeiro... Só fico emocionada com a capacidade de um diretor que mostra os personagens mais marginais e controversos sendo exatamente o que eles são, o que todos somos: humanos; apaixonados; fortalezas vulneráveis; cômicos e trágicos.
No final de tudo, nossas estruturas estão aí pra serem abaladas, não é mesmo?

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