sábado, 29 de agosto de 2009

“Tudo me move.”

Patrice Chéreau, um dos maiores diretores contemporâneos de teatro, ópera e cinema fala sobre sua vida, criações, inquietudes e o Brasil.


De Nova York por telefone, nossa conversa começou com Chéreau ligando para a sede do Porto Alegre em Cena por causa de uma chamada não atendida no seu aparelho celular. “Estou com esse número no meu celular. Estou dando o retorno”, ele justifica. Falamos um pouco quando me pediu para ligar em meia-hora. Após 30 minutos exatos, retornei. Chamou e ninguém atendeu. Segundos depois o telefone do Em Cena toca. É ele se desculpando. Desligamos e em seguida liguei para ele. No que finalmente conseguimos tabular uma conversação, Chéreau riu dos textos que montou quando era jovem e da visão de grande diretor que só ele desconhece.
Ao longo da conversa, que durou mais de uma hora, passamos do tema profissional da sua carreira artística e espetáculos para falar de inquietudes, política e humanidade. Terminamos com autores, projetos, textos e o futuro. Antes de desligar eu o disse que em breve nos encontraremos em Porto Alegre quando ele estiver na cidade para as apresentações de O Grande Inquisidor nos dias 12 e 13 de setembro de 2009 às 21 horas no Theatro São Pedro. Antes disso, sua atriz Dominique Blanc estará em cartaz com La Douleur, direção dele, no mesmo teatro nos dias 9, 10 e 11 de setembro também às 21 horas.


Porto Alegre em Cena: O seu trabalho é reconhecido no Brasil pela excelência artística. Você é considerado um dos maiores encenadores contemporâneos do mundo.
Patrice Chéreau: Ah! Muito obrigado.

É verdade. Como o teatro, o cinema a e ópera entraram na sua vida?
(Risos) Oh! Quando eu era muito pequeno, uma criança. Lembro de montar uma peça com uns amigos e me apresentar no colégio onde eu estudava, na cidade de Lézigné, onde nasci. Fui muito novo para Paris, com doze anos de idade. Não sei por quê. Eu venho de uma família de artistas. Meu pai era pintor e minha mãe designer, mas ela também pintava. Então quando criança eu costumava pintar, desenhar. Um dia, comecei a fazer teatro. Eu ia muito a teatro. Quase todo o final de semana. E gostei muito daquilo.

Então você começou a sua vida artística no teatro?
Sim. Mas depois fui estudar em Paris, em outro colégio. Lá havia um grupo de teatro e me juntei a eles. Lembro que ganhei um papel bem pequeno, mas eu era muito ruim, tinha apenas dezesseis anos nessa época. O meu trabalho no grupo era pensar o cenário, pintar o cenário, pensar as luzes, pendurar as lâmpadas e ensaiar. Eu não dirigia e nem atuava ainda. Esta escola era muito próxima à uma coisa muito importante para nós, a Cinemateca de Paris. Eu ia a Cinemateca dia sim,dia não, e durante todos os finais de semana. Por causa disso, entrei nesse grupo e gostava muito de estar ali, de ajudar. Via as pessoas trabalhando e ia ao cinema para ver todos os filmes apresentados, o expressionismo alemão, muito outros. Nesse grupo, eu era o mais velho, e então, naturalmente, comecei a dirigir. Isso aconteceu em 64 e, desde então, nunca mais parei. Foi a minha primeira produção teatral.

Qual o nome do espetáculo?
Era uma peça de Victor Hugo. Na verdade, sete peças. Os atores tinham medo dela. (Risos) “A Intervenção”, L'Intervention, de Victor Hugo. Uma peça muito estranha. Não era boa. Mas, sabe, quando você é jovem tem a idéia, quer montar e fazer peças de autores desconhecidos, textos desconhecidos. Tinha 19 anos nessa época. As montagens já eram consideradas profissionais. Depois, montei espetáculos com textos de Molière. Algumas pessoas foram assistir à uma dessas peças e fui convidado para dirigir minha primeira ópera, “A Italiana em Argel”, de Rossini, com doze pessoas. Isso foi feito em Spoleto, uma pequena cidade da Úmbria, na Itália. A ópera tinha sido dirigida por um famoso escritor ítalo-americano, Giancarlo Binote, e foi ele quem me convidou para fazer a produção do espetáculo. Depois, fui chamado para trabalhar no Piccolo-Teatro, em Milão. Tive muita sorte. Sempre tive muita sorte. Foi muita sorte ter trabalhado em Milão, nesse belo teatro, com excelentes atores. Depois disso, voltei à França.

Quanto tempo você ficou na Itália?
Três anos, de 1970 a 1973. Em 73, voltei para a França. Voltei para ser co-diretor do Teatro Nacional Popular de Paris, com Roger Planchon, justamente quando o Ministro da Cultura da França, Sr. Jacques Duhamel, transferiu o Théâtre National Populaire para Villeurbanne, perto de Lyon, fundado pelo próprio Planchon, em 1957.

Quando e como começou a sua trajetória com o cinema?
Em 1974, com “La Chair de l'Orchidée”, A Carne da Orquídea, meu primeiro filme, com Charlotte Rampling no elenco. Já tinha feito alguns filmes curtos para a televisão. Eu já era famoso no teatro, e resolvi escrever e dirigir um roteiro para outro veículo. Depois, comecei a fazer meus próprios projetos de cinema.

Todos esses anos dirigindo teatro, ópera e cinema. Qual a diferença entre eles? O método de direção muda de um para o outro?
Não. É o mesmo trabalho. É exatamente o mesmo trabalho. Com textos diferentes, com ferramentas diferentes. São mídias diferentes, mas o meu trabalho é exatamente o mesmo. Você está contando uma história para a platéia em qualquer um deles. Fazendo com que o espetáculo torne essa história clara. Só posso continuar trabalhando nessas três formas de arte porque acredito que seja o mesmo trabalho para todas. Não vejo diferença entre elas.

Você costumava ver diferença entre elas quando era mais jovem?
Ah sim! Porque as pessoas me forçavam a ver que elas eram diferentes. Queriam me convencer de que teatro e cinema são diferentes. Eu sei disso. Não sou estúpido. Mas, de alguma maneira, para mim é igual. Há coisas que você pode ter na tela que você não pode conseguir fora dela. Você pode ter o close up e você pode ter o corte no cinema, é claro.

E o seu compromisso com as três artes é o mesmo?
Depende. Depende do momento. Fiz muito teatro, muito cinema, mas nesses últimos quatro anos me dediquei mais à ópera. Fiz três produções e agora estou fazendo uma remontagem em Nova York. O problema é tempo, cronograma de trabalho. Meu último filme fiz para o festival de Veneza. Nos últimos anos, não fiz mais cinema porque estava envolvido com óperas. Depois quero voltar a fazer teatro. É tudo uma questão de agenda. Até porque uma ópera deve ser preparada três anos antes de estrear e um filme em três meses vocês termina as gravações. Em quatro anos, sem dúvida eu poderia ter feito vários filmes.

A Rainha Margot é um dos seus filmes mais conhecidos no Brasil.
É o meu filme mais conhecido em todos os países.

É um filme maravilhoso. E você conhece algo do cinema brasileiro?
Não muito. Eu conheço muito bem o Walter Salles. Eu o conheci pessoalmente, vi seus filmes e gostei muito. Mas é o único nome que me vem à cabeça.

O que o senhor espera das apresentações de La Douleur e de Le Grand Inquisiteur no Brasil, nas cidades de São Paulo e Porto Alegre?
Não sei. Teremos de esperar. Estou muito curioso e feliz de levar esses espetáculos ao Brasil, porque só estive uma vez no Brasil, isso em 1980. Estive no Rio de Janeiro e em São Paulo para algumas conferências. Será a primeira vez que estarei apresentando no Brasil meu trabalho como diretor e ator.

Nos trabalhos de ator, você tem algum processo definido para a construção de seus personagens?
Atuo muito poucas vezes. Não é meu trabalho principal. Meu trabalho é o de direção e, às vezes, eu próprio me dirijo. “O Grande Inquisidor” é uma leitura. Estarei sentado no palco com o texto na mão, lendo. Claro que não é simplesmente uma leitura. Mostro ao público como penso que esse texto deve ser dito, como eu o vejo. Meu trabalho de ator está sempre ligado ao meu trabalho de diretor.

E dirigir Dominique Blanc? Como foi sua relação com ela ao dirigir “La Douleur”?
Já tinha trabalhado com ela antes, interpretou a mãe na Rainha Margot. É uma excelente atriz com quem gosto muito de trabalhar. “La Douleur” não é um texto feito para o teatro. Apresentei esse texto da escritora Marguerite Duras para Dominique porque o achei muito bom. Trata das dores de uma mulher que espera seu marido voltar de um campo de concentração nazista. É muito diferente de uma peça cujo texto é feito para teatro; é um texto extremamente literário, uma opção de trabalho mais difícil, mas instigante. É importante escolher textos assim para serem trabalhados no palco e contar também no palco histórias que não foram escritas para o teatro.

E as suas expectativas com relação à interpretação de Dominique Blanc foram atingidas?
Não crio expectativas em relação às minhas peças. Diretores não têm expectativas. Claro que quando dirijo, espero o melhor, mas as expectativas são com relação ao texto. Os caminhos do processo de direção de uma peça mudam durante os ensaios. Espero encontrar sempre uma situação nova e inesperada.

Nos espetáculos La Douleur e Le Grand Inquisiteur vocês usa muitos efeitos de som e de luz. Isso é uma coincidência ou uma opção estática?
Não. Não uso efeitos de som no “Le Grand Inquisiteur” e a luz do espetáculo é muito simples. Há apenas uma iluminação básica para que as pessoas possam me ver lendo o texto. Em “La Douleur” há efeitos de som, mas são muito discretos e a iluminação também é simples. No teatro, o que gosto de trabalhar é a relação entre o ator e o texto. Minha direção é voltada para que o público veja a força de um texto na interpretação de um ator. Os efeitos técnicos vêm de fora para complementar, mas não fazem parte essencial da encenação.

No início da nossa conversa você disse que, quando começou sua carreira artística, trabalhava na parte técnica dos espetáculos produzidos no colégio onde estudava. Isso não dá vontade de usar mais os efeitos de luz, som e cenário?
Pelo contrario. Naquela época, justamente, aprendi que o meu trabalho era para servir de pano de fundo ao trabalho dos atores. Gosto disso no teatro, prioritariamente. Na ópera e no cinema, posso utilizar mais esses efeitos todos, mas no teatro minha opção de direção está definida.

Há algum autor de que você tem vontade de montar para o teatro ou cinema que nunca tenha montado antes?
Tenho um projeto para o próximo ano, 2010, de montar uma peça, na verdade duas peças, de um autor francês ainda não muito conhecido, Jon Fosse. É um belo escritor e um belo texto.

Nesse momento você está dirigindo uma ópera em Nova York. Pode falar um pouco sobre esse trabalho?
Sim. Fui convidado para fazer a remontagem de uma ópera adaptada do escritor russo Fiódor Dostoievski, que se chama “Recordações da Casa dos Mortos”, inspirado em sua vivência,em 1849, quando foi preso e acusado de participar em reuniões na casa de um revolucionário que conspirava contra o regim. Aí, Dostoievski foi condenado à morte. Passou nove anos na Sibéria, quatro no presídio de Omsk, e mais cinco como soldado raso.

Você gosta de Dostoievski ainda hoje?
Dostoievski foi um grande escritor, mas para esse trabalho só fui convidado para a remontagem da ópera. Estou trabalhando nele agora, interrompo para ir ao Brasil e depois à Argentina. Volto para o trabalho final e a tempo de assistir a estréia, em novembro.

Você tem alguma inquietude? Algo que o mova e que você usa no seu trabalho?
Tudo me move. As pessoas que vejo nas ruas todos os dias quando vou pegar o metrô. As relações das pessoas, a individualidade das pessoas. Tudo faz parte do meu trabalho. Penso no que vai acontecer com o mundo: guerras, política, economia. Tudo isso me move, tudo mexe comigo.

E essas coisas, como você as utiliza no seu trabalho?
Procuro traduzir esses sentimentos para o palco, me perguntando sobre essas questões enquanto trabalho. Nem sempre encontro as respostas. Não tenho respostas para todas as minhas perguntas. Por que as coisas são como são? Por que alguém não tem o que comer se trabalha tanto? Por que alguém com poder pratica o mal e não tem paz?

Você sabe que Peter Brook também montou o texto “O Grande Inquisidor”?
Sei, sim. Mas não assisti ainda.

Você saberia me dizer por que dois grandes diretores de teatro no mundo escolheram o mesmo texto para dirigir?
Porque é um texto maravilhoso. O texto é fantástico. Ele tem tanto para falar sobre os seres humanos. Das pessoas, da essência humana. Fala muito sobre a liberdade.

Você tem a consciência de ser um grande diretor? Você sabe que as pessoas admiram o seu trabalho?
Sei que isso é um fato. Mas não sei porquê e nem o que isso significa. Hoje mesmo, de manhã, estava indo para o ensaio e uma moça me chamou pelo nome. Eu me virei para ver o que era e, então, ela me falou o quanto admirava meu trabalho. Ora, estou em Nova York, cidade com oito milhões de pessoas transitando pelas ruas. Aparentemente todos sabem que sou um bom diretor, menos eu.

Você pensa no futuro?
Não penso muito no meu futuro, mas penso muito no futuro do mundo, no futuro da humanidade.

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